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Poesia "Madrinha Karlinda" de Ceiça Maria

 Madrinha Karlinda

De nascimento se chamava Carla. Vivia com sua mãe no pequeno vilarejo no interior do nordeste brasileiro.

 Era uma figura exótica. Negra retinta, alta de corpo esguio e musculoso, parecia uma pantera molhada de chuva.

Contavam que na escola ela tinha mais amigos que amigas, jogava futebol e bolinha de gude e não levava desaforo pra casa.
Quando a conheci ela já era uma moça e apesar dos anos, me lembro que tinha no rosto um sorriso meio debochado e olhar inquisidor, jeito de quem nada temia.
As más línguas do vilarejo dela tudo falavam. Que era uma perdida  na companhia de meninos, caçando passarinhos, embrenhando-se no mato. Outros insinuavam que ela era “macho e fêmea”(expressão cunhada às lésbicas na época ) pois preferia shorts à saias e vestidos e seu jeito resolvido e atrevido confirmava isso.
Não gostava  muito de falar sobre seu pai, mas  todos sabiam  que era filha de um agrimensor, que fizera a estrada do lugar (“a rodagem” como diziam). Um turco, que se apaixonou por sua mãe, dai a razão dos cabelos crespos serem tão brilhantes e desta ter um nariz fino figurando naquele rosto rebelde. A família dele não permitiu que ele assumisse como esposa aquela bonita mulher negra que lavava as roupas dos funcionários da empresa de terraplanagem.
Frequentava a Igreja Católica na época (por isso ficou sendo minha madrinha rs).

Quando sua mãe faleceu, ela devia ter uns 18 anos, e ficou sendo um “bom partido” do lugar visto que o pai havia deixando-lhes algum recurso, que sob a boa administração da mãe rendeu em terrenos e casas de aluguel.
Para surpresa de todos a moça logo casou-se e para maior espanto do esposo este constatou que esta ainda era virgem! O enlace não durou. Ficou exatos três meses casada.A união foi anulada, já que ela indomável não se curvava ante às ordens do marido e não aceitou que este administrasse seus bens.
Teve imediatamente outros dois namorados e ficou ainda mais mal falada que antes. Um dos namorados trabalhava no cartório da vilazinha. Numa noite ela foi até lá, pegou o livro de registros alterando seu nome para Karlinda!
Em certa ocasião o padre lhe negou a Comunhão, na frente de todos, ao que ela retrucou que deveria haver no inferno um lugar para religiosos moralistas como ele. Foi ameaçada de excomunhão e saiu da igreja pisando duro. Nunca mais voltou ali.
Eu ganhei outra madrinha, que sequer lembro o nome e de tão insignificante se configurou em minha infância que eu não poderia escrever uma frase completa sobre a mesma. Sic
Era idos da década de 70. Karlinda fumava, tomava uns tragos, sentava de short curto no peitoril do janelão de sua casa, enfrente à praça e cantava as canções de Rauzito. Ria alto, assoviava, continuava gostando de caçadas, onde ia junto com homens e comprou um jipe Willis azul que dirigia em alta velocidade e quase nenhuma habilidade. Dessa forma figurava como persona non grata na comunidade.(parece que ela não se importava nem um pouco).

Usava turbante as vezes e não alisava seus cabelos à ferro quente como era a prática na região.

 Defendia as mulheres, especialmente as de sua cor da exploração das migalhas pagas por serviços domésticos executados na casa das famílias de melhor condição social.

Em certa ocasião, adentrou a “Casa Rosada”, um famoso prostíbulo dali, e levou consigo uma menina negra que havia ficado órfã  e naquela mesma noite seria leiloada como se fosse um animal, pelos fazendeiros e demais frequentadores, visto que a mesma era virgem e só tinha 13 anos. A partir de então esta passou a morar com Karlinda e a ter seus cuidados e proteção, exigindo que a chamassem pelo nome e não mais pelo feio apelido que até então era conhecida.

Numa de minhas recordações, lembro-me vivamente que acordei numa manhã, encantada porque havia sonhado que passeava nas nuvens no jipe da minha madrinha, íamos nós duas a caminho do céu. Ela como sempre assoviando. Quando o sonho foi contado na sala de costura, as amigas de minha mãe riram muito dizendo que eu sim poderia ir para o céu, já minha madrinha....Tive muita raiva delas e senti pela primeira vez na vida, refletido nos olhos daquelas senhoras “obedientes” a tudo e a todos o que era despeito e inveja. Pensei na hora que preferiria ser como Karlinda, que vivia rindo e cantando, e me parecia bem mais feliz, do que como aquelas, que apesar de serem adultas, ainda precisavam obedecer a seus pais, irmãos mais velhos, esposos e até ao padre, exatamente como nós crianças.
Em outra ocasião, uma outra moça ( ex colega de sala de Karlinda) foi expulsa da casa dos pais porque havia “se entregado” ao namorado. Vergonha pública! Imaginem na casa de quem ela foi acolhida....Pronto! passaram a dizer que sua casa era um bordel. Afinal ela bebia e jogava cartas com os homens até de madrugada, ouvia jogos de futebol pela Rádio Nacional, em volume bem alto e xingava palavrões.
Uma vez, foi levada a depor porque voltando de uma festa de madrugada, fez xixi na praça. Decerto “os olheiros” de plantão a denunciaram. Ao ser inquirida, ela perguntou qual era a diferença no xixi, além do “conduto” já que o delegado também urinava na cerquinha ao lado da delegacia...Ficou alguns dias presa por desacato. Todos os boêmios da cidade, ricos e pobres, a defenderam e ela foi solta. Levaram um violão e saíram de lá bebendo e cantando com ela à frente como se fora uma procissão.
Foi quando tudo aconteceu...
Era época de campanha política.Comício na praça. Guerra acirrada ARENA e MDB. Ela encostada em seu jipe vaiou alguém no palanque e de repente o mico!. Um ovo estragado serpenteou por sobre as cabeças dos presentes estourando na testa calva do candidato a prefeito.

Karlinda foi presa como comunista e agitadora, embora muitos tenham dito que não havia sido ela.

Eram tempos difíceis aqueles...ela apanhou muito. Toda a fúria daqueles machos patriarcas foi descontado nela. Ela gritava tanto, que no vilarejo de apenas duas ruas se ouvia de longe. Xingava e cuspia neles, disseram depois.
Depois se calou.
E calada saiu quase um mês depois. Tomaram-lhe o jipe azul. Ela vendeu rapidamente todos os seus bens e foi embora morar em Olivença, uma linda cidade no litoral baiano, deixando aquele vilarejo mais triste e feio sem sua linda e marcante presença.

 Nem morando longe ficou livre dos maldosos do lugar, que ao saberem que na sua nova cidade haviam praia de nudismo, fantasiavam (eles por desejo e elas por inveja) que Karlinda agora não vestia mais roupas , andava nua como uma indígena, e eu a imaginava linda com o corpo nu de Iracema e os cabelos de Santa Efigênia que eu vira num livro, andando nas ruas quase como uma deusa.
Nunca mais soube notícias de minha madrinha. Mas aquele olhar desafiando o mundo, jamais me esquecerei. Hoje sei que ela viveu à frente de seu tempo e que pagou o preço por isso.

Vila Caquetá, abril/2019


 Esta poesia é de autoria da escritora Ceiça Maria , mestre em Letras: linguagens e identidades, pela Ufac, pedagoga, socióloga e autora do livro "Amor em tempos de pandemia e outros contos". 






Publicado por: Kaliny Custódio do Carmo

Discente do Curso de Bacharelado em História
Membro do Laboratório de Pesquisa da Área de História Observatório de Discriminação Racial (LabODR/Ufac)
Membro do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac)

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